Os anos de 2022 e 2023 foram marcados pela maior aquisição da história da indústria de games, a compra da Activision Blizzard pela Microsoft, processo que durou por volta de 20 meses devido a toda a burocracia e preocupação de órgãos antimonopólio de todo o mundo. Pessoalmente eu fui muito contra esta aquisição por considerar um movimento anticompetitivo e com risco real de monopólio.
Agora essa batalha já é praticamente perdida, apenas falta uma última decisão do FTC, a Federação de Comércio dos Estados Unidos, a qual provavelmente não pretende desfazer a compra. A preocupação sobre monopólio da Microsoft já era grande antes pela compra da Zenimax/Bethesda (Doom / Fallout / Skyrim) e vários outros estúdios adquiridos pela empresa antes como Double Fine (Psychonauts), Compulsion (We Happy Few), Ninja Theory (Hellblade), Mojang Studios (Minecraft), Obsidian (Outer Worlds), Undead Labs (State of Decay) entre outras.
Observem que apesar de a Microsoft ter comprado uma grande quantidade de estúdios, o Xbox Series X/S ainda tem uma carência muito grande de projetos de larga escala e de qualidade. Enquanto o PlayStation 5 já lançou jogos como God of War Ragnarok, Spider-Man 2, Horizon Forbidden West, Returnal e recentemente Helldivers 2, a Microsoft tem tido muito pouca sorte com seus jogos, normalmente performando abaixo do esperado como Halo Infinite, Redfall e Starfield.
Algo que também é muito questionado é por que essa preocupação é só com a Microsoft. Afinal, Sony e Nintendo igualmente compram estúdios. É justamente sobre isso que iremos falar adiante, sobre qual a diferença na forma em que Sony e Nintendo compram estúdios em relação à Microsoft e como isso costumar se refletir em jogos melhores.
Em "O Dilema da Inovação" (The Innovator's Dilemma), nossa tradicional bíblia do Clayton M. Christensen, ele comenta sobre "Criação de capacidades através de aquisições", ou seja, como uma empresa maior pode ganhar novas capacidades/habilidades através da aquisição de empresas menores. Nas palavras dele, ao adquirir uma empresa é preciso se perguntar: "O que é que realmente criou o valor pelo qual eu tão caramente paguei?", em outras palavras, o que gera valor nessa empresa.
Christensen divide o valor de empresas em dois pontos: "Recursos" e "Processos e Valores". "Recursos" são as pessoas, produtos (aqui inclua as franquias de games), tecnologia, posição de mercado, enquanto "Processos e Valores" seriam as formas únicas que uma empresa tem de trabalhar e tomar decisões que permitem a ela entender seus consumidores e conseguir os satisfazer.
Partindo desse ponto, vejamos o que acontece em muitos casos. Se o valor da empresa encontra-se nas pessoas que trabalham nela, ser comprada pode afetar como a empresa funciona a ponto das pessoas que geravam esse valor, decidirem sair da empresa. Alguns exemplos disso são vistos na Rare e na Tango Gameworks, que rapidamente perdeu talentos como Shinji Mikami e sua protégée Ikumi Nakamura.
O criador de Resident Evil sai da Capcom e cria seu próprio estúdio para fazer os jogos que quer, misturas de ação e terror. Produz a série The Evil Within e Ghostwire: Tokyo, que apesar de não serem sucessos de vendas, eram bons jogos. A Microsoft compra o estúdio e de repente diz que ele não pode mais fazer os jogos que quer e então obriga o estúdio a fazer algo alegre e colorido como Hi-Fi Rush, um jogo também divertidinho, mas nada a ver com a Tango Gameworks.
Obviamente isso resulta na saída de Mikami, ele não precisa disso, e de todas as pessoas que o seguiam por acreditar em sua visão ou porque queriam trabalhar em jogos de ação e terror. O que sobrou para a Microsoft após as pessoas partirem? Ela agora possui duas séries de terror: The Evil Within e Ghostwire: Tokyo, que não venderam tanto, e nem tem mais acesso às mentes que as criaram.
Eles possuem todo um estúdio de pessoas que trabalhavam em jogos de terror, agora frustradas, tendo que trabalhar em outro tipo de jogo. O estúdio que produzia valor agora provavelmente vale menos do que se a Microsoft simplesmente tivesse aberto um estúdio do zero para fazer Hi-Fi Rush. Não faz sentido comprar um estúdio para fazer isso, efetivamente destruindo toda sua cultura.
Quando uma empresa maior se apropria de uma menor, pode não ser de imediato, mas é quase certo que ela irá mudar os "Processos e Valores" porque subitamente a empresa menor precisa alcançar resultados diferentes dos que se propôs quando foi criada, como maiores margens de lucro ou suprir um gênero de jogo ou público em falta em um console. Os jogos de terror da Tango Gameworks não faziam sentido na estratégia maior da Microsoft. Da mesma forma a Arkane Lyon que era especializada em fazer jogos singleplayer foi arrastada para criar um jogo live service multiplayer com Redfall.
A Bungie que era um ótimo estúdio perdeu lugar para 343 Industries em Halo, a Epic Games perdeu lugar para a The Coalition em Gears of War, a Lionhead Games foi fechada e quem está fazendo o novo Fable é a Playground Games. Em todos os casos os estúdios, as pessoas, os processos e os recursos, partem, ficando para trás apenas a franquia. Provavelmente a Microsoft acredita que as franquias são o que ela está obtendo de valor nessas aquisições. E eu acho que ela não poderia estar mais errada.
Cada vez que ela compra um estúdio ela destrói lentamente os processo que levaram à criação de seus jogos de sucesso e então ou não consegue voltar a criar jogos de sucesso, ou até os cria, mas com um custo igual ou superior ao que se tivesse criado um estúdio apenas para fazer aquele jogo, sem a desvantagem de ter destruído algo que já existia antes.
Devido às mudanças nos "Processos e Valores" os estúdios comprados pela Microsoft se tornam incapazes de fazer novos sucessos. Não se ouve mais falar da Double Fine após lançar Psychonauts 2, Hellblade 2: Senua's Saga está em produção e seguirá os mesmos processos e valores que levaram à criação do jogo anterior, mas provavelmente após ser lançado a Microsoft irá conversar com o estúdio para introduzir seus novos processos e valores: "O que você está fazendo é legal, mas aqui está o que precisamos que você faça agora", assim como fizeram com a Arkane Lyon após Deathloop.
O verdadeiro valor dos estúdios está em seus recursos, as pessoas que fazem os jogos, elas são os verdadeiros gansos dos ovos de ouro gerando riqueza constantemente. Para isso o estúdio precisa de um equilíbrio extremamente difícil de alcançar, muitas vezes gerado por fatores aleatórios ou através de tentativa e erro através dos tempos. Qualquer mínima interação externa pode ser o bastante para acabar com esse equilíbrio.
Vemos muito isso na forma como a Nintendo interage com estúdios maiores em comparação com estúdios menores. A Nintendo força muito seus processos e valores a estúdios pequenos e constantemente os leva a sua destruição ou sucateamento, normalmente por pedir muitas alterações e mudanças nos projetos, aumentando o custo que para uma empresa pequena pode se tornar impraticável. Muitos estúdios pensam estar realizando um sonho ao trabalhar com a Nintendo, um ícone da indústria de jogos, e se metem em um pesadelo.
Alguns exemplos de empresas que foram tão prejudicadas pela Nintendo quando a Microsoft faz, foram alguns estúdios como a Rockstar (na época DMA Design), Silicon Knights (Eternal Darkness), Camelot (Golden Sun), Argonaut Games (Star Fox, Croc), Skip (Chibi Robo), Genious Sonority (Pokémon Colosseum), Kuju Entertainment (Battalion Wars), Vivarium (Odama), entre outras.
As empresas que não acabaram por completo se tornaram sombras de quem eram antes de trabalhar com a Nintendo. Estavam em ascensão com jogos cada vez maiores e mais ambiciosos e de repente começam uma queda para jogos mais simples ou títulos licenciados. Curiosamente ela não parece forçar tanto a barra quando trabalha com a Namco Bandai (Star Fox Assault), por exemplo, ou quando trabalhou com a Sega (F-Zero GX) ou Konami (Dance Dance Revolution: Mario Mix).
Apesar de haver muitos casos da Nintendo estragando companhias, há também casos em que ela as pega para criar e as endireitar com seus "Processos e Valores", como foi a Rare (Rareware), que saiu de uma empresa que trabalhava em jogos medíocres licenciados da LJN na época do Nintendo 8 Bits (NES) para uma potente desenvolvedora no Super Nintendo e Nintendo 64.
Eles também parecem se dar especialmente bem com a equipe da Namco Bandai que auxilia em jogos da Nintendo e fica com projetos como New Pokémon Snap e Pokkén Tournament. Há também casos em que ela parece ser neutra, como a Grezzo, onde a empresa não força seus "Processos e Valores", mas igualmente não ergue o estúdio para fora de sua mediocridade.
Na Microsoft eu não consigo pensar em nenhum caso em que os "Processos e Valores" da empresa fizeram bem para qualquer estúdio que ela comprou. Isto que torna extremamente preocupante sempre que é anunciado que eles adquiriram uma nova empresa, pois provavelmente todo o seu valor será desmantelado em alguns anos. Ficam as franquias, perde-se tudo que as tornava fantásticas.
Quem parece lidar melhor com aquisições é a Sony e não sei dizer especificamente por qual razão, talvez por não ter filosofias tão fortes para forçar aos estúdios. É possível que internamente ela também acredite em dar liberdade pra seus estúdios, como parece acontecer em alguns casos, mas isso é apenas especulação.
É inegável a ascensão em qualidade nos jogos da Guerrilla Games (de Killzone para Horizon), Naughty Dog (de Crash Bandicoot para Uncharted e The Last of Us), Sucker Punch (de Infamous para Ghost of Tsushima), Insomniac Games (de Sunset Overdrive para Spider-Man), Housemarque (de Resogun para Returnal), entre outras.
Recentemente essa afirmação sobre a Sony também tem um asterisco pois a empresa teve um surto, junto com outras da indústria de games, de transformar várias franquias em "Jogos como serviço" e botou vários estúdios para fazer jogos multiplayer, até a Naughty Dog e a Sucker Punch, para fazer um multiplayer de The Last of Us e Spider-Man, hoje cancelados. Mas vamos ignorar essa parte mais recente da história.
A seguir vamos pensar quando realmente vale a pena comprar um estúdio. Primeiro, é preciso já ter algum tipo de relação com o estúdio, para que a tomada não seja considerada hostil. Em vários casos a Sony e a Nintendo realizam projetos em parceria com as empresas e começam a se familiarizar com elas antes de uma aquisição. Quando os "Processos e Valores" naturalmente se alinham, é possível que elas sejam absorvidas sem perdas de recursos como pessoal.
Não fazia sentido por exemplo a Nintendo querer fazer projetos simples com a Silicon Knights (remake de Metal Gear Solid), Camelot (Mario Tennis e Mario Golf) ou Rare (na época do Nintendo 64) que queriam realizar projetos ambiciosos. Os talentos desses estúdios provavelmente ficavam frustrados querendo fazer grandes projetos, mas obrigados a trabalhar apenas no que a Nintendo aprovava, até saírem ou perderem produtividade. Algo semelhante aconteceu na Retro Studios que constantemente tinha suas ideias de projetos abatidas pela Nintendo e hoje já faz 10 anos desde seu último jogo original lançado.
Um dos motivos que as empresas não fazem isso é que criar este elo demanda dedicação e tempo. Pense num paralelo com a primeira fase do MCU (Universo Cinematográfico da Marvel), lentamente construindo um universo com filmes do Homem de Ferro, Capitão América, Thor, para culminar em Vingadores. O que a maioria das empresas, como a Microsoft, faz é o que a DC Comics fez na época com o DCU (Universo Cinematográfico da DC), correndo e tomando atalhos como Batman vs. Superman para chegar logo à Liga da Justiça, sem fazer o trabalho de base.
Algumas pessoas poderiam pensar, por que a Microsoft compraria estúdios para destruir seu valor? Não faria sentido. Porém a Warner Bros. não tinha também a intenção de destruir seus filmes, mas seus "Processos e Valores", que provavelmente funcionam para a empresa como um todo, forçaram decisões que não funcionavam para aquele nicho de filmes. As grandes empresas são como gigantes desajeitados que às vezes não conseguem fazer nada, mesmo que bem intencionado, sem destruir por onde passam.
Outro ponto extremamente necessário para que os estúdios prosperem é dar um nível de liberdade para eles. A Microsoft apenas dá essa liberdade no início quando compra os estúdios, enquanto a Nintendo nunca dá. Nos últimos anos o canal Did You Know Gaming desenterrou vários dos projetos que a Retro Studios sugeria para a Nintendo e nunca eram desenvolvidos como Adept, Raven Blade, Thunder Rally, The Blob Game, Metaforce, Heroes of Hyrule, "Metroid Prime 1.5", Project X (com Sheik), Metroid Tactics, Star Fox Armada e mais. A Retro Studios teve tantas demissões que de 200 pessoas trabalhando lá passou a ter 50, logo, a maior parte de seus "Recursos" foram perdidos.
Um dos motivos que parece ajudar a Sony é que ela não adquire muitas empresas e parece dar um bom apoio para que elas experimentem com coisas diferentes, fornecendo liberdade, financiamento e outsourcing de trabalho para estúdios menores e especializados. A maioria dos estúdios provavelmente estava crescendo ao invés de diminuir, ao menos até essa recente onda de cortes de pessoal em 2024, muito por reflexo da pandemia e investimentos errados em jogos como serviço.
A terceira opção além de nutrir um elo com a empresa e dar liberdade é reconhecer suas capacidades únicas como um estúdio menor. Quando falamos de disrupção, trata-se de um processo sempre que vem de baixo para cima. A Nintendo nunca conseguiria criar um Minecraft porque seu interesse está em trabalhar com suas próprias franquias de sucesso. Minecraft só pode ser criado por uma pessoa buscando criar algo diferente para se destacar no mercado. Porém, nada impediria que a Nintendo fosse dona de uma empresa pequena que criasse Minecraft.
Desde que a grande companhia não force seus "Processos e Valores" em uma empresa pequena, ela pode permanecer hábil com a capacidade de fazer coisas que a empresa grande não é capaz de fazer, inclusive gestar uma disrupção dentro de seu próprio quintal. Um dos fatores que gera a disrupção é que as empresas ficam cegas apenas para as ideias que têm potencial de maior retorno, não se abrindo para pequenas ideias que podem dar retornos satisfatórios e, principalmente, que podem surpreender.
Eu sou um grande defensor que Nintendo, Sony e Microsoft deveriam ter um selo de jogos menores liderado por uma empresa secundária com liberdade para tomar decisões e desenvolver seus próprios pequenos projetos. Uma empresa para desenvolver jogos originais, projetos bizarros, títulos de nicho, que não fariam sentido para as gigantes corporações.
Como o vencedor do Oscar de 2024 de Melhor Roteiro Adaptado, o escritor Cord Jefferson de "Ficção Americana", comentou em seu discurso: "Ao invés de fazer um filme de 200 milhões, tentem fazer 20 filmes de 10 milhões". Algo que vale também para jogos. É muito mais fácil ter crescimento através de vários projetos do que apostar tudo em grandes passos que custam milhões e anos de desenvolvimento.
Um estúdio desses na Nintendo já poderia ter nos trazido Mother 3 há muitos anos, traduzir jogos antigos que a Nintendo nunca lançou nos Estados Unidos, talvez até remasterizados ou remakes. Na Sony poderíamos ter o retorno de personagens como Parappa e Tomba e na Microsoft talvez finalmente um novo Banjo-Kazooie de qualidade.
Ao se retirar a obrigação desses jogos de serem projetos gigantes com uma lucratividade extremamente alta, se permite que eles ganhem em qualidade, que as empresas diversifiquem seus portfólios, que possam suprir nichos abandonados e talvez atingir bolsões de usuários desconhecidos. Como Christensen fala, não é possível medir um mercado que não existe, ninguém olharia para Minecraft antes e diria: "este é um mercado de bilhões de dólares".
Em resumo, só vale a pena comprar um estúdio se você estiver disposto a respeitar seus "Processos e Valores" para manter seus "Recursos" como pessoal. Ao adquiri-los apenas pelas franquias, sem pensar nas pessoas que as tornaram fantásticas, destrói-se todo o valor que o estúdio possuía.