sábado, 7 de dezembro de 2019

Review sem spoilers de Coringa


Coringa foi um filme que eu não tive a chance de ver no cinema porque quis evitar o risco de algum atirador achar que era uma boa noite para estrear junto com o filme e após assisti-lo acho que foi bom que isso tenha acontecido pois acho que pude absorver melhor vendo em casa. Toda a histeria sobre o lançamento do filme que acabou felizmente não dando em nenhum tiroteio é algo que não acho completamente injustificado. Abaixo minha modesta review sem spoilers.

Sobre as preocupações, há mensagens em Coringa que eu diria que são perigosas, sementes de ideias que conversam diretamente com mentes perturbadas como gatilhos para tomarem ação. Ele puxa muitas ideias de Taxi Driver do Scorsese, o qual eu também acredito que tenha certas mensagens perigosas. Não quer dizer que filmes polêmicos não devam ser feitos, mas acho que devemos ser responsáveis com algumas coisas.

Tirando isso do caminho, veio então minha surpresa... eu não gostei muito de Coringa. Não achei genial, não achei profundo, não achei uma boa história... talvez porque também não gostei muito de Taxi Driver. Apesar de tudo é um filme que me dá vontade de conversar a respeito e acredito que algumas interpretações possam fazê-lo alcançar mais profundidade, porém eu não tenho certeza de que seja completamente intencional.

Teoricamente o filme se passa em 1981 mas eu sinto como se ele fosse mais antigo, pouco após o fim da Guerra do Vietnã. Gotham está em frangalhos com lixo pelas ruas, lojas falindo, sem emprego e simboliza uma certa época dos Estados Unidos que não significa a mesma coisa para nós. Eles eram um país extremamente rico que de repente sentiu um freio em seu estilo de vida, não é algo que fale diretamente para nós da eterna república de bananas.


Acompanhamos a história do ponto de vista de Arthur Fleck, o homem que até o final do filme se transformará no Coringa. Ele é uma pessoa pobre, mora com a mãe, tem um emprego ruim de palhaço e tem alguns problemas psicológicos como depressão. Além de tudo ele sofre de um distúrbio que o faz rir incontrolavelmente em certos momentos, um pouco como uma síndrome de Tourette, que o torna meio excluído socialmente.

Dá pra ver que Arthur é uma pessoa que sofre bastante com seus problemas e em vários momentos sentimos empatia por ele e gostaríamos que ele não sofresse tanto, pois vemos também que ele é esforçado mas coisas ruins estão acontecendo em sequência em sua vida. No entanto talvez nada disso tenha acontecido de verdade e ele apenas quisesse que tivéssemos essa empatia por ele. Arthur é um "narrador não confiável".

Logo no início do filme é possível notar que algumas coisas que são mostradas na tela na verdade não estão acontecendo. O termo "narrador não confiável" da literatura é quando você não pode acreditar completamente em quem está contando os fatos. O problema é que quando você tem um narrador não confiável revelado tão cedo fica difícil de investir emocionalmente na história pois você nunca tem certeza de que ela está acontecendo.

Nesse ponto acho que filmes com uma reviravolta perto do final que alteram nosso nível de confiança pelo narrador, como Clube da Luta, fazem um trabalho melhor. Mesmo que às vezes vistos como aquela expressão americana "pônei de um truque só", como se apoiassem completamente no truque, mas ao menos eles apresentam uma história coerente e que vale a pena ser revisitada, seja em lembranças ou assistindo de novo. Eu não sinto vontade de assistir Coringa novamente.


A história em sua superfície me parece ser sobre como o surgimento do Coringa a partir do lixo de Gotham acaba por incendiar toda a população da cidade para que eles despertem sobre o conflito de classes, para que os pobres comecem a exigir dignidade dos ricos. É um tema relevante atualmente mas que não se desenvolve realmente no filme. Como se mostrasse que a solução para um problema grave da sociedade fosse um vilão de quadrinhos erguer uma revolução.

Muitos falaram que esta é uma história de origem do Coringa, mas eu não consigo vê-la dessa forma, não consigo ver como essa pessoa se tornaria a figura que conhecemos como Coringa. Eu também não acredito que o Coringa precise ter motivos de ser ou um ponto de partida, como o Coringa de O Cavaleiro das Trevas que cada vez conta uma história de origem diferente.

Não deveria ser possível virar o Coringa porque algumas coisas ruins aconteceram com uma pessoa com problemas psicológicos, o Coringa simplesmente é. Quando se tenta explicar o Coringa acho que ele deixa de sê-lo. Eu vejo ali Arthur Fleck, não o Jóquer, o palhaço. Gostaria muito que todas as coisas que acontecem no filme para justificar essa transformação simplesmente nunca tenham acontecido, sejam todas coisas da cabeça de Arthur e na verdade ele só as tenha imaginado como justificativa para se tornar o Coringa e que no fundo ele simplesmente o seja.

Preciso confessar que achei o ritmo da narrativa bem lento, com uma hora e meia de preparação para vinte e cinco minutos de Coringa no final. Durante a maior parte do filme ele não faz você se sentir muito bem, as cores são depressivas, há ótimos ângulos de câmera, tudo colabora para você se sentir tão desconfortável como Arthur. No final as cores e a música se libertam um pouco como o próprio Arthur, ele passa a trazer cor e alegria para o mundo, talvez como imagine em sua mente.


Curiosamente eu acho que o filme podia ser mais quieto e silencioso em algumas cenas. Há momentos em que músicas tocam para invocar sentimentos de tristeza ou tensão mas que poderiam funcionar bem melhor se fossem simplesmente em silêncio com som ambiente. As cenas são bem filmadas, era possível que o próprio espectador chegasse ao sentimento sozinho pelo estímulo visual e de uma maneira muito mais prazerosa por não ter sido guiado.

Joaquin Phoenix está ótimo no papel e se não fosse por ele o filme desabaria. Ele te vende cada coisa que você precisa comprar. Ele te vende Arthur como um desajustado social com crises de riso incontroláveis. Ele te vende o Coringa como um psicopata assassino que cruzou a linha da sanidade. E mais importante, ele te vende a transformação, como se uma pessoa normal pudesse virar um personagem de histórias em quadrinhos de uma forma que a história não faz.

Ao encarar o filme como uma história com uma mensagem eu não vejo nem uma boa história e nem acho a mensagem no meio dele. O que o filme queria dizer? Os pobres devem comer os ricos? Isso é uma solução bem superficial. No entanto, ao interpretá-lo como um estudo do personagem, como uma forma de entender o Coringa, acho que ele funciona melhor. Se pensarmos em todas as cenas não como uma sequência linear que está contando uma história mas como piadas que passam pela cabeça de Arthur, subitamente o filme é bem interessante.

Em um dos trailers do filme Arthur fala que ele pensava que sua vida era uma tragédia, mas que é na verdade uma comédia. Se as tragédias que vemos acontecer com Arthur pudessem ser o próprio personagem pensando nessas cenas como piadas e dizendo para si mesmo: "não seria engraçado se isso acontecesse?", acredito que haja muita mais substância. "Não seria engraçado se os pobres se voltassem contra os ricos?" e o punchline é a realidade cruel que eles não o fazem e continuam oprimidos.


Imagine se cada coisa terrível e cruel que acontece com Arthur durante o filme fosse interpretado por sua mente como coisas engraçadas. Assim como ele vê graça na crueldade que acontece com ele, ele vê graça na crueldade que acontece com os outros. A mente de uma pessoa que pensa na crueldade como um punchline da realidade, que acha engraçado o fato da vida ser cruel com pessoas boas. Me parece que esta seria a mais perfeita explicação da mente do Coringa, completamente incapaz de nos explicar onde está a graça e em completa agonia tentando nos fazer enxergar uma piada que só ele entende.

No final eu senti uma pontinha de crítica a quadrinhos no filme, as mesmas críticas que Alan Moore e Scorsese já fizeram antes sobre a inviabilidade dos super-heróis no mundo real e sua superficialidade em conceito. É como se Arthur visse uma grande piada no fato de que idolatramos o Batman e esperamos que uma criança com um grande trauma vire um super-herói enquanto o punchline é a cruel realidade, as odiamos quando elas viram Coringas.



4 comentários:

  1. Pensei de certa forma igual,não acho o filme pobre por que desde o começo encarei como tudo acontecendo na mente dele,o coringa contando como deixou Arthur acreditar que se transformava em coringa quando era exatamente o contrario;Arthur na verdade seria um alter ego do coringa.

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    1. Eu não sei se o filme quer que fiquemos caçando narrativas alternativas nele e nem se seria pretensioso sugerir isso sendo que ele é meio raso, mas aí novamente temos o paralelo com Táxi Driver, uma história como alegoria.

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